quarta-feira, 21 de maio de 2008

Da motivação

O presente artigo expõe uma reflexão, sempre inacabada, sobre a motivação. Porque se trata de uma das principais questões levantadas por qualquer praticante de Parkour, e, até, de qualquer pessoa que se proponha a si mesma a conquista de algo, senti uma necessidade de enquadrá-la, defini-la, tanto quanto possível.

Creio que a motivação varia inversamente com o hábito. Se tomarmos a primeira como uma variável activa, o segundo podemos tomá-lo como uma variável passiva, ambos produzindo o mesmo efeito, isto é, a acção. Quero dizer que uma acção pode ser o produto de, ou motivação, ou hábito. Não creio que sejam mutuamente exclusivos, só que, enquanto a motivação tem um papel activo, excitando-nos, o hábito tem um papel passivo, ou apassivante, inibindo-nos. A motivação gera acção consciente, o hábito gera acção inconsciente. Acção, aqui, é tomada como um termo substituível por atitude, reacção, mesmo, num sentido próprio, emoção.

A motivação força um caminho novo para as nossas acções, leva-nos a querer fazer coisas novas, desvia-nos de um padrão de comportamento que já conhecemos e faz-nos criar e explorar outros. O hábito, por seu lado, faz-nos tomar acções que já conhecemos, comportamentos cujos efeitos não serão mais uma surpresa, mesmo que continuem a dar-nos prazer. Mais ainda: ele inibe a nossa vontade de procurar coisas novas para fazermos. Na medida em que, para uma dada acção, nos faz exigir cada vez menos racionalização – uma ponderação dos resultados a alcançar, da experiência prestes a ser vivida – como que vai adormecendo em nós a procura de um certo distanciamento que essa racionalização nos permite e que, por vezes, é necessário para que possamos realmente escolher fazer coisas novas.

Se tomarmos por analogia o percurso das gotas de água sobre um vidro, diríamos que a primeira das gotas a contactar com a superfície trilha um caminho por entre muitos possíveis, levada por um factor que aja sobre ela sob a forma de motivação, que, no seu caso, é o caminho que ofereça menos resistência à sua passagem. Devido à diminuição subsequente da força de atrito (resistência), todas as gotas seguintes serão conduzidas pela vala que a primeira criou com a sua passagem À medida que mais e mais gotas vão passando, vai diminuindo a quantidade de resistência que se opõe a cada nova passagem. Acontece, pois, que estas são influenciadas pelo mesmo factor que a primeira, a menor resistência, e da mesma forma, são motivadas, devido à diminuição progressiva dessa resistência com cada nova passagem. Pode pôr-se o caso, porém, (que é o que acontece connosco) de chegar uma altura em que, permanecendo o factor que age sobre cada gota (a menor resistência), este deixar de o fazer enquanto motivação, por exemplo se houver uma saturação da superfície do vidro e se torne impossível diminuir ainda mais a força de atrito. Neste caso, já nada há, para cada nova gota que cai sobre o vidro, que motive a seguir o trilho feito pelas gotas precedentes em vez de outro por onde pudesse ir, pois a resistência já não poderá diminuir mais. O que as leva, então, a seguir pela mesma via? O hábito, quer dizer, o nível de resistência mínimo, agora invariável, alcançado pelas predecessoras.

No nosso caso, para além das razões que suportam, ou justificam, o agirmos desta ou daquela maneira, e o possível efeito motivador que exercem sobre nós, há igualmente uma progressiva atenuação desse efeito motivador, como que um desgaste temporal da nossa capacidade de sermos afectados da mesma maneira pelas mesmas razões. Cada vez que agimos tendo em mente uma razão qualquer, essa razão perde valor motivador, sentimo-nos menos motivados. Falo aqui dos factores, causas, razões, que, de facto, produzem uma alteração interna forte, que mexem connosco, que nos devolvam a um sonho de podermos ser qualquer coisa e, como que embevecidos por uma qualquer quimera, nos façam esquecer aquilo que, por hábito, tínhamos planeado fazer e nos levem a um outro lado, diferente e novo. Há outros, certamente muito importantes também, cuja utilização que fazemos deles diferem, porém, seja pela sua abstracção, seja pelo seu carácter assumidamente utópico, seja, como no caso de um sentimento religioso, pela sua magnanimidade quando em comparação connosco. A estes, a que normalmente designamos por “grandes ideias” ou ideais, socorremo-nos para justificar uma posição tomada, geralmente quando em conversa com outras pessoas, onde procuramos, tal como num debate no parlamento, defender uma causa, uma visão do mundo. Neste caso, creio que o seu efeito é de inspiração, e não tanto de motivação. Por exemplo: O conhecido argumento, em prol da actividade física e do Parkour, de que é necessária a preparação para situações extremas, para emergências, para ajuda comunitária, é uma das ideias que age como inspiração para a prática da modalidade, como justificação para terceiros e, se reflectirmos sobre isso, para nós mesmos. Não é, porém, um verdadeiro factor de motivação. Isto porque, creio, no plano das emoções, das inclinações, das atitudes que definem as escolhas no nosso dia-a-dia, elas não agem com nenhum tipo de energia nova. Elas são as bóias que sustêm o barco, mas não podem ser os motores que o empurrem avante. Talvez por isto estas raramente mudem ao longo do percurso do traceur.

Os factores que nos motivam – os verdadeiros motivos –, aqueles em que, pela sua presença concreta no nosso dia-a-dia, pensamos ao escolhermos sair de casa para treinar, não podem estar tão afastados de nós quanto essas ideias. Eles têm que ser capazes de produzir um efeito no agora, no presente. Um exemplo deste tipo é dado pelo David Belle num conhecido documentário sobre o Parkour onde, imediatamente antes de se lançar de um telhado para a relva, fala da adrenalina que é possível sentir com a prática do Parkour. É verdade que, ao referi-la, tornou-a numa ideia abstracta, desapossou-a da emoção e da materialidade que, afinal, só ele estava a sentir no momento em que falava. Não esqueçamos que se estava a referir a terceiros e, por isso, a necessidade de tornar esse sentimento rudimentarmente acessível a todos nós. Importa, com este exemplo, questionarmo-nos sobre se, nesse momento, ele invocou para si o ideal humanista de ajuda do próximo, ou o lema ““etre fourt pour etre utile”. Creio que não…

Numa palavra, esta distinção resume-se muito bem na visceralidade com que as ideias e as razões nos afectam na nossa prática diária, e é aí que reside a possibilidade de nos motivarem e de, com o tempo, nos habituarmos a elas.

É precisamente relativamente a estes, na transformação da sua capacidade de nos afectarmos, que o jogo motivação/hábito acontece. Quando a sua força deixa de se fazer valer, ou seja, quando deixamos de ter necessidade de nos auxiliarmos nessa razão para tomarmos determinada acção, então passamos a agir por hábito. Continuamos a agir, não porque algo nos empurre para tomarmos essa acção, apenas porque nada nos empurra a tomarmos uma acção diferente dessa. Desta forma, o hábito pode ser encarado como uma inibição da força de motivação de um determinado factor para agirmos de determinada maneira. Ele vem, por força de uma eficácia e poupança de energia, substituir a motivação (mas nunca os factores em si) na nossa condução, tornando-a desnecessária.

Se tomarmos novamente o exemplo dado pelo David Belle, alguém em quem, julgo, o hábito exerce um papel muito mais forte do que a motivação, de resto, tal como na maioria dos veteranos do Parkour, a adrenalina a que se refere durante o salto pode ser uma forte razão que leve alguém que nunca praticou Parkour a calçar uns ténis e a experimentar um salto daqueles. Essa pessoa nunca tinha tomado essa acção. Um determinado factor, a sensação de adrenalina, exerceu um efeito de motivação sobre essa pessoa, ou seja, levou-a, pela sua própria imaginação, a considerar uma acção que, até então, nunca tinha ponderado como possível para si e, contra o que é hábito seu, saiu de casa, trepou um muro qualquer e lançou-se nessa experiência. Para alguém como o David Belle, o hábito do treino diário, já profundamente enraizado, leva-o à mesma acção que a esse novo traceur, e, ao fazê-lo, o factor que exerce influência nele é o mesmo, a adrenalina. Porém, a sua experiência já não é nova, a acção tomada é a mesma que no dia anterior, e no outro, e no outro e, a menos que algum outro factor o motive a tomar uma acção diferente, o hábito criado por si em si fará com que, por muitos dias que virão, ele calce os ténis e se lance de um telhado abaixo. Para esta acção específica, o Belle não precisa já, ao contrário do novo traceur, de ser motivado pela possibilidade da descarga de adrenalina. Ele já a conhece, o que não quer dizer que não sinta igual prazer de cada vez que ela acontece. Pelo contrário, é precisamente o conhecimento pleno desse efeito que tornou desnecessária a motivação, e fê-lo, provavelmente de forma inconsciente, aceitar como um hábito a prática diária do Parkour.

Uma outra forma de vermos a relação entre a acção, a motivação e o hábito, é tomando em conta o trabalho realizado por nós em nós, quer dizer, pela nossa vontade mais consciente sobre o resto dos nossos interesses, apetites e inclinações, até nos levarmos à opção por uma acção. Na analogia descrita acima, diríamos que, quando as primeiras gotas iam passando, a diminuição da resistência do vidro motivava-as, enquanto que elas próprias iam contribuindo para a diminuição dessa resistência, ou seja, iam realizando trabalho, contribuindo para a motivação das gotas que viriam a seguir. As últimas gotas, as conduzidas pelo hábito, já não realizavam trabalho nenhum, porque a saturação do vidro já não permitia uma redução da resistência. Elas eram conduzidas pelo trabalho outrora realizado, mas já não contribuíam para a motivação posterior. Podemos supor uma ligação entre a motivação que nos confere determinado factor e o trabalho que realizamos em nós, ou seja, as mudanças que somos levados a produzir pela nossa vontade na nossa forma de agir, no nosso quotidiano, nas nossas escolhas. Descobrimos que não estamos motivados a fazer algo quando, para o fazermos, já não consciencializamos completamente, quando já não há Dúvida, questões, pormenores a serem acertados.

Não é de supor, porém, que, no conjunto das acções mais recorrentes do nosso quotidiano, aquelas que, pela sua necessidade, pela premência com que se impõem, enfim, pela memória que vão introduzindo na nossa prática diária, não seja realizado nenhum trabalho do tipo especificado. Quero dizer, há certamente uma vontade inerente à própria possibilidade de fazermos coisas, independentemente do móbil que a despoleta ou a forma como o faz em nós, e há, consequentemente, um trabalho realizado por essa vontade. Porque é da natureza humana a dinâmica emocional que traz a inconstância, raros são os momentos em que um leme seguro e firme seja dispensado, e é no trabalho que o nosso grande timoneiro interior realiza, que reside a própria possibilidade de fazer uma escolha. Se aceitarmos essa inconstância, cuja base está, em parte, na afectação constante da nossa sensibilidade pelo meio circundante, então podemos suspeitar da própria inconstância da nossa vontade e, quem sabe, de todo um espectro de matizes sobre que vai rolando com o passar do tempo e a transposição dos obstáculos diários, que definirão a força e a determinação dessa vontade. Mais que isso, determinarão a necessidade que, tendo em vista determinada escolha (para uma dada acção), teremos do seu carácter férreo, ou seja, da sua imobilidade, da sua permanência e salutar insistência em conquistar essa escolha, em tomar essa acção. Desta forma, ainda que possamos admitir a realização de um certo trabalho interno com qualquer acção tomada, menosprezemos aquele mínimo necessário para podermos funcionar correctamente e concentremo-nos antes naqueloutro suplementar, extra, aquele “boost” que nos desperte para algo que nunca havíamos feito anteriormente. E é aí que pode, talvez, residir a diferença, em termos de trabalho, entre a acção motivada e a acção habituada.

domingo, 11 de maio de 2008

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quinta-feira, 1 de maio de 2008

Chegar ao castelo

A serra mostrou-se à nossa frente na manhã de um sábado com sol e uma temperatura amena. Antes de começarmos tive a sensação de estar à beira de um momento importante, uma descoberta, uma experiência intensa. Éramos dois a subir.
Primeiro as ruas da vila, íngremes e estreitas. Depois a estrada que abraça a serra. E finalmente o bosque. Escolhemos fazer o caminho a direito, o mais possível. Surgisse o que surgisse queríamos seguir em frente e tentar por tudo ultrapassar as dificuldades - muros em ruínas, silvas, fragas, árvores caídas, muita terra... O bosque foi ficando progressivamente mais despido e escarpado até que chegámos a uma imensa penedia que anunciava a aproximação ao topo. A escalada exigiu toda a força de braços e pernas que o treino havia conquistado, a irregularidade dos apoios pôs à prova todas as competências adquiridas. Compreendi que muitas delas nunca haviam sido verdadeiramente testadas mas por outro lado senti que estavam prontas, aptas, ansiando em segredo por este desafio.
O Remy, mais alto, chegava com menos apoios ao cimo dos penedos. Eu, mais pequeno, entrava pelas aberturas nas rochas e rastejava com mais facilidade. Até que chegámos ao topo dos rochedos e ao último desafio. A muralha do castelo, vertical à nossa frente, oferecia a subida mais exigente de toda a escalda. Usando as reentrâncias na parede subimos passo a passo, testando todos os apoios até tocar com as mãos nas ameias do castelo. Um último impulso e estávamos seguros no interior das muralhas.
Ao pousarmos as malas, feitas pesadas para optimizar o treino, senti-me invadido por uma sensação boa. Lá em baixo estava uma miniatura da vila de Sintra, brilhante sob o sol do meio-dia e ao longe, mergulhado numa leve neblina, o filão de onde originei, suburbano de possibilidades.