quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Mensagem


O Percurso mudou. Cerca de trinta publicações passaram desde que iniciámos este caminho, mais de um ano desde que mostrámos pela primeira vez o nosso olhar sobre o Parkour. Esse olhar foi sempre dirigido pela crença de que o Parkour é algo que não se esgota apenas na sua dimensão desportiva, mas sim algo que vai muito para além disso, que se expande continuamente em todas as direcções, que penetra possivelmente o domínio da estética, das ciências humanas, do entretenimento, da espiritualidade e de tantas outras dimensões da vida cuja compreensão não está ainda ao nosso alcance. Foi com base nesta convicção que tentámos, em todos os artigos, demonstrar como o Parkour podia de facto, de uma forma palpável e real, estar presente em tudo isto, ou então como tudo isto podia estar presente no Parkour, porque se por um lado ele expande-se chegando ao resto, é a sua permeabilidade que permite que o resto aconteça nele. O Percurso seria o canal desta dialética. Se esta demonstração foi ou não bem conseguida não me compete dizer, nem o conseguiria fazer provavelmente. Estou certo de uma coisa no entanto – de que a demonstração não está completa. Mas O Percurso mudou.

Os vossos terminais atestam esta mudança. A nova imagem, agora mais reconhecível e característica mas também mais ecológica, é consequência de outra mudança mais profunda. Esta, prende-se com o facto de eu passar a ser, a partir de agora e por tempo indeterminado, o único autor ativo deste blogue. O contributo do Pedro enriqueceu O Percurso de uma forma decisiva e a admiração que eu sinto por ele não pode sequer ser posta em palavras. Maior ainda é o sentimento de gratidão que apesar de ser exclusivo da esfera pessoal, não posso deixar de tornar público. Se acompanharam os últimos artigos que foram publicados no blogue conhecem as razões que o levaram a esta decisão. Esse artigo é um documento de profunda eloquência que vai muito para além daquilo que são as suas motivações pessoais deixando os leitores com uma pergunta incómoda mas pertinente a que responder sobre as suas próprias motivações perante a vida. Na sua função de arquivo, O Percurso será um espaço mais rico e recheado com este e todos os outros artigos do Pedro, pelo que a continuidade da sua influência não terá impedimentos, barreiras ou obstáculos.

A rede chega a todo lado.

E O Percurso mudou. E como referi estou convencido de que o trabalho ainda não está terminado, de que a demonstração não está completa. E é da própria essência do Parkour julgar que nunca estará, que o caminho é contínuo e que não há um fim à vista, que não há medalhas de ouro para ganhar, que não há um pódio mais alto do que todos os outros para subir. E assim, a palavra longe não tem significado possível. E é lá que quero chegar. E é com uma convicção renovada e uma determinação fortificada que darei continuidade a esta procura. E este blogue, farol de luz discreta mas constante, será, como sempre, o porto seguro onde sei que posso voltar para repousar, pensar e imaginar novos destinos para um percurso que não tem fim.

No entanto esta mensagem não estaria completa sem um apelo que eu sinto urgir. No sentido de reforçar a vitalidade deste blogue, agora com a participação de apenas um autor, é o meu desejo que os leitores tenham um papel ativo nos conteúdos que são publicados, que intervenham, que não se coíbam de concordar ou discordar, que manifestem a vossa opinião. Para esse efeito os espaços reservados aos comentários são perfeitamente capazes de servir esta discussão e debate, aquilo que eu julgo ser a mais importante força para o desenvolvimento das ideias que os artigos sugerem. A sua continuidade fica sempre nas vossas mãos pois os textos, os vídeos, os artigos novos e antigos não são mais do que enunciados a preencher, a verdade que neles existe só se verifica quando a leitura crítica que deles fazem tem uma repercussão no vosso pensamento, nos vossos treinos, no vosso Parkour ou no entendimento que fazem dele. É essa repercussão, de pequena ou grande dimensão, que eu gostaria que fosse partilhada pois tal como uma faísca pode ser o prelúdio de uma labareda, também essa partilha pode certamente originar outras questões, temas ou assuntos tão ou mais válidos que o primeiro. Assim, espero que O Percurso seja cada vez mais sinónimo de ponto de passagem para todos vós.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

The point of return



“There is no return beyond a certain point. That is the point one must reach.” - Franz Kafka.

A question

“Why do I do Parkour?” should be the capital question of any traceur. This question marked the end of the last “Rendezvous”, which included members of the Yamakasi, people who dedicated all their lives to Parkour. That itself proves its pertinence, for to formulate that question is to search the meaning of training for Parkour in one’s life.

Behind this question resides another, more general and comprehensive,: “Why do anything at all?”. It may sound absurd at first a question like this and, without the proper preparation, it is absurd, because its true formulation, beyond its mere phonetic dimension, requires an exercise of abstraction that shifts and relativizes everything one apprehends as “facts” in one’s life: the family it was born into, the place where it lives, the profession it has, what one studies, what one does in it’s free time, what one trains to become. This exercise is successful when we feel a certain convulsion in the stomach, a shiver down the spine, something that feels like nausea. That’s when we look at those “facts” from above and, like a map, flatten them to the second dimension. Only then can be understood where the map ends.

A philosophical exercise such as this is difficult to go through and more difficult to maintain. However, doing it for the first time takes us to a point of no return. Wherever we go, the remembrance remains alive and ready to take us back to that point. This happens because the act of relativizing the “facts” shifts our usual referential, which some might not even be aware of, and places it in between the two most important events of any life: birth and death. The moment which marks the beginning of Time, the countdown, when world Is, and the ultimate end, the black wall where everything falls in oblivion.

When I ask “Why do I do Parkour?” it’s under these terms that I do it. That’s constantly evident in my thought. Under this light, as comprehensive as possible, the word “Parkour” loses its meaning and gains the power of the chameleon. It metamorphoses freely and takes the place of anything one wishes: “Why do anything at all?”.

Before this viewpoint, there is an attitude, the most applicant, the most comforting and, in a way, one which we are programmed from birth to maintain: to erase the undertaken exercise, forget it, grab on to something else that fulfils life with meaning. With this attitude, however, “Parkour” maintains its chameleonic power, because anything – everything - is worth when it comes to keep one alienated from that sharp evidence: that death cleans it all. Any pastime (it the strong meaning of the word) is usable, and Parkour is as good as any other before the lack of meaning with which, apparently, life presents us with. Actually, it is that lack of meaning that gives all the more meaning to one’s attitude. Even if we acknowledge that there is nothing we can do before the inevitability of oblivion and death, why insist on it? Why waste time dwelling on that dead end? Life doesn’t cease to be, and one doesn’t stop being able to do things just because there is no reason to all this.

I won’t allow this to become a quarrel and will accept this position on the matter. Not only this, but the way in which I want to think of Parkour involves the making of that choice towards life. Thus, I accept that it is worth doing things in life and not stopping in the aporia it presents us with. However, I won’t allow the referential to shift again, simply because I can’t do it. If I grant myself a reason to evaluate things in what is considered a “normal” or “common” viewpoint, I know that in the next day, or the day after, that strong, visceral, painful remembrance will take me to that absolute referential (the only one) and all the meaning will mix again, and the volume with which our emotions fill the “facts” with will shrink to a paper sheet thinness.

With this, the question “Why do I do Parkour?” can be again formulated under a new light. With the meaning I lend it now, I want to keep it from metamorphosing. I want to know why must I place “Parkour” in the question and not something else. I have accepted that something – anything - must be placed there. But why “Parkour”?

In the way I’ve formulated the question, all the motives which are shared among the community lose their value: “I do Parkour because it’s fun, because I want to be fit, because I want to be prepared for a possible emergency, because I want to be famous, because it’s aesthetically pleasant, because I admire who does it, because it gives me a sense of freedom, because I have too much free time, because I want to be able to help others, because I like to film and watch myself doing things few can, because it allows me to meet other people and make friendships, because I want to do action movies, etc”.

None of these reasons is exclusive of Parkour. Some of these don’t even resemble the spirit which the community likes to see involving Parkour. More important than that, none of them implies that the word we place in the question should be “Parkour”. If I practiced climbing, if I were a musician, if I were a scientist, if I enjoyed collecting stamps, the reasons I’d give to do that would be as non-valid as any a traceur might give to practice Parkour. Its relevance would be equivalent, all flat. Because the value of a reason is derived from the power it has over our choices, and the strength with which it makes us do a particular activity - , there is no such value in a reason as long as it doesn’t provide an answer to the question in the terms I’ve stated it. It will only have power over me when its value is unconditional, when its value holds itself beyond that influence it may have over my particular, contingent, choices. Otherwise I will have as many different reasons to do something else as I will have to do Parkour.

An argument, more obvious and probably supported by most of the people, is that one doesn’t need any reasons to do Parkour. You simply do it and keep on doing it. However it may threaten to resolve the matter and lead us to abandon the discussion, this argument has the same importance as all the other reasons mentioned above. It doesn’t tell us why one should do Parkour instead of anything else, and it goes against our very need to question ourselves about this. And, if I feel the urge to question myself, I should do it and look for an answer that calms this urge, instead of running away from it, cover it with a white, immaculate cloth, a white sheet void of thoughts.

Not only this, but if we think about the usefulness of the debate in what concerns awaking other consciences for the phenomenon of Parkour, to avoid finding a clear, positive reason to practice Parkour means leaving the matter of the increase and decrease of our community to chance, and it means not knowing what to answer when someone asks us to describe the importance of Parkour, and it means not knowing how to communicate to others why we do Parkour. And the first and ultimate support of a community is communication. On the other hand, if we manage to answer the question, we will find a way of showing to anyone why we do Parkour and why should anyone do Parkour also.

It intrigues me the reasons people give when a debate like this arises within the community. Everyone, except perhaps the first generation of traceurs, was a person prior to being a traceur. There was a personal context in which Parkour was inserted from the outside; there was an adaptation of our lives, our routines, our schedule, to the implications of the practice of Parkour. That which was absorbed by each one depended on the circumstances in which it took Parkour to its own life, in which it came to know Parkour, and the objectives it set to itself when it started to practice.

I believe that, like everything else we decide to do with our lives, there are multiple layers or levels of involvement with Parkour that represent the intensity with which we accept it in our lives. With each layer comes different responsibilities, compromises, different beliefs at different degrees, and it is the level of involvement a traceur finds himself in that will determine the training it will endure, and the traceur it will become. That level will itself depend on its short or long term plans of its life and how much one is willing to sacrifice to achieve them. At the same time, the necessary discipline and the personal changes one must go through will depend on the physical and mental distance which separates one from those achievements. All is very much concatenated, and it makes sense for a traceur to ask himself at one point in his route “How involved am I?”, and proceed to an analysis of the answer it comes up with.

More important than this, the level of involvement will determine our open-mindedness to do anything else. However it may be true that our spending of time and resources will contribute to a more perfect and more important result of what we do, it is certain we will not be able to spend that same time and resources again to do something else. You can’t eat a cake and keep it.
To be able to answer the question “Why do I do Parkour?” would lead one to the deepest level of involvement possible, where Parkour becomes all one lives to do. With Yamakasi, and all that first generation, their lives was Parkour prior to them being able to formulate the question and, perhaps due to that, they might have an answer of their own.

An answer

For the two and a half years of my path in Parkour I have kept alive a constant doubt on my level of involvement with it, on the choices I must make on what I will build. I should say that ever since I believed all that Parkour can be in my life, beyond its pastime activity, that much of my training exercise has been to understand its correct dimension and its adequacy to what my life was before I started practicing. Based on that dimension, I tried to answer the question “What importance has Parkour in my life?”. Its not that everyone has this kind of doubts, not that there isn’t people who never have tried to reach an insight on their own idea of what Parkour is (which doesn’t mean they won’t have an idea of some sort), nor that there isn’t people who despise this sort of analysis. For me however, who tried to look from day one to the future I wanted for myself, the path of traceur ran along that future “I” who I want to become. “Ran along” and not “overlapped”. And this despite my understanding of what future might that be exactly. The important is that choices that were presented to me throughout my training, that had to be made, were never taken lightly.

I have always put everything at stake, even though, some of the times, I would only feel a slight bite of discomfort while I chose to go train instead of doing something else, sometimes almost as if I should be doing something else. I’ve always looked to be as aware as possible of the implications a serious dedication to such a demanding activity as Parkour brings with it, of the way I would then face all other possibilities, of everything I had to renounce, all the non-choices I made with every choice done for Parkour. In a word, I faced Parkour with responsibility. To me, that means placing the question “Why do I do Parkour?” in the terms stated above, even when not explicitly, simply sensing the presence more or less constant in each training of what I aspire one day to become, before Parkour, and all those choices prior to my training it.
Because of this, my path wasn’t continuous but dashed. During my first and a half year of training a lot of times I would pause and place questions, trying to convince myself it was Parkour I wanted to do at that exact time and for the rest of my life. There were frequent fluctuations of my confidence, as I progressed and committed myself to the activity of Parkour but trying to keep a returning point if I should want to go back and do something else with my life. I’m not referring to a quantitative commitment, as if I would only do Parkour with every hour I had, but to a qualitative commitment, so intense it would change forever the way I contemplated my future.

Of course there was always the possibility of facing everything in a lighter mood, just like simply having fun. But I knew that my responsible commitment meant facing things with definitive importance. Even if there was any time left to do a lot of other things, I knew that if I didn’t impose this to myself, I would end up neglecting some parts of training, lose discipline and risk ending up with an injury. In short, I would be wasting time trying to practice Parkour in the least efficient way possible.

Part of my strategy to deal with this obstacle, the most important in all, was to convince myself that, because Parkour was in its embryo stage, its concept was still open and could be taken not only as a physical activity but also as an attitude of learning and confidence when facing the desire to do anything – everything - as long as I was truly dedicated to it. I would face Parkour as a kind of revelation that would awaken whoever was willing to listen to it, announcing the possibility of expansion and emancipation of ideas and feelings. I found myself believing that if I saw Parkour as the true chameleonic activity, so complete that included the possibility to do everything, I would no more have the necessity to fit it in my life’s schedule, it would no more occupy the space reserved for all other things in my life because it would become that same space where all things happen. With this in mind, Bruno Campos and I decided to create a blog [www.percurso-parkour.blogspot.com] that expressed that precise feeling towards Parkour, where we could stretch to its limits the definition of Parkour and include all those things we would like to do that the usual conception of it wouldn’t allow.

As time passed, with progression and empirical learning of what in Parkour cannot change, I began to think of these ideas as inadequate and somewhat romantic. It occurred to me that all these doubts and thoughts could be signs of discomfort, as if I should be doing something else other than Parkour. It wasn’t de definition of Parkour that had to be stretched but my hopes and aspirations that had to shrink in order to fit with reality. I found that from my initial point of view, with all the dreams and expectations, I started forming some chimerical and naïve ideas of what could Parkour become. I defied reality in believing that being a traceur was more than what it really is, in believing that it meant being in a privileged position when compared to being anything else. I know now that those were ideas of someone that had never practiced Parkour in its truer sense.

Everyone, even unconsciously, has its own personal conception of what Parkour is. However personal we might admit that conception to be, what Parkour is will never become clear and true without a long, empirical (not theoretical), experience of its training. We arrive at that conception through the knowledge given to us by sacrifice and hard work of an everyday training programme. Because changes occurred in a traceur are more than physiological and psychological, they affect his beliefs and desires, his hopes and personality as much as his activity is affected by these. If a traceur builds himself an idea of Parkour in the beginning of his training he should be able to make it permeable to the suggestions his experiences influence him with and should manage to reshape it and polish it with the passage of time. It took some time before I understood this and until then my training was somewhat mined by these preconceptions.

Up to a certain point of my evolution as a traceur I managed to keep myself from answering the question stated above. I couldn’t know the answer nor needed I to know it. I would debate myself in search of it but, even though I wouldn’t find it just by thinking about it, that never kept me from training, it was never a real physical impediment to my progression and that itself proved the empirical character of Parkour that I had forgotten. Thus I reached a stage in my physical evolution where an answer, or something I could place for an answer, came up to me clear and powerful: The conviction that no answer could be given to the question.
There is not one absolute valid reason why someone that doesn’t practice Parkour should start doing Parkour. The importance Parkour may have to a non-traceur isn’t dependent on a definition of it; it’s simply dependent on the particularities of each life upon its first contact with Parkour, and only if such a contact does happen. It might seem somewhat naïve of me to believe it necessary to say this, but I say it and if it is naïve then I am naïve.

This enlightened new way of thinking about Parkour was attained when I felt reaching a point of no return in my training, that is, a point beyond which the sacrifice and deliverance were such that I would nevermore be able to give away what I had already accomplished, for anything. For me to continue to progress efficiently and completely in Parkour, it would have to become the priority in my life. I realized that and was thus forced to make a choice. I decided to never train Parkour again.

I could indeed simply give away my aspirations of becoming the best I could in Parkour, the best traceur it is possible for me to become. I could, truth be said, learn from all this that, instead of training to be the best I could, I should content myself with becoming the best my time and the space in my life permitted.

I still chose not to for two reasons:
I learned a lot about myself and my personality in the two years and a half of my experience. Throughout my training the method of Parkour pushed my adapting capabilities to its limits because of its exigency of certain traces of character as perseverance, resistance or confidence. That was only possible because, when facing obstacles, I stopped myself from deserting and forced myself to find solutions to them. And I did it because I insisted on that chimerical idea of Parkour I stated above. Without it I don’t believe I would ever have the strength to surpass some of the difficulties presented. As I said, that idea evolved to become what I believe to be more realistic and I know that I won’t be capable of surpassing such difficulties with its new version. Some demands that Parkour brings with it are too much for me and I don’t feel I want to fulfil them unless I make it the priority in my life, something I am not willing to do.

The second reason (somewhat more positive than the first) has to do with what it means to dedicate myself to something. I discovered through Parkour what it means true dedication. It was not until I reached that point of no return that things became really serious to me and only then I found out what the word serious means. And that I owe to Parkour. I know now I want to go beyond the point of no return of something and I know what that means. I just don’t know yet what it will be though I know it is not Parkour.

Much is said about what Parkour is. There are frequent debates on the community on what drives someone to training Parkour. It was an answer I searched for when I first realized the dimension Parkour can have in one’s life. I did find an answer though it is personal and truly not shareable. It is not universal.
The only thing universal and that should be faced with the utmost responsibility by all traceurs alike is the question: “Why do I do Parkour?”.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Garagens









*Segunda de duas partes. Primeira parte aqui.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

O ponto de retorno


“A partir de um determinado ponto já não há retorno. É esse o ponto que se tem de alcançar.” – Franz Kafka.


Uma pergunta


“Por que razão faço Parkour?” deve ser a pergunta capital de qualquer traceur. Foi com esta pergunta que terminou o último Rendezvous, com os membros dos Yamakasi, pessoas que dedicaram toda a vida ao Parkour. Isso prova a sua pertinência já que formulá-la é procurar medir o significado da prática na vida de cada um.


Por detrás desta pergunta, uma outra, mais geral e abrangente, reside: “Por que razão se faz alguma coisa?”. Pode parecer absurda à primeira vista uma pergunta como esta e, sem a preparação necessária, é-o. Assim é porque a sua formulação verdadeira, para além da sua dimensão meramente fonética, requer um exercício de abstracção que nos leve a deslocar e a relativizar tudo o que tomamos como “factos” na nossa vida: a família que temos, o local onde moramos, a profissão que exercemos, aquilo que estudamos, o que fazemos nos tempos livres, o que treinamos. O exercício é bem sucedido quando sentimos uma certa convulsão no estômago, um arrepio na espinha, algo parecido com uma náusea. Aí sabemos que olhamos as coisas de cima e, como um mapa, reduzimo-las à 2ª dimensão, podendo ver até onde se desenrola esse mapa.


Um exercício filosófico como este é difícil de fazer e ainda mais de manter. Mas, ao fazermo-lo pela primeira vez, atingimos um ponto sem retorno. Para onde quer que vamos, a recordação permanece viva e pronta a levar-nos de volta para esse sítio. Isto acontece porque a relativização que acontece dos “factos” desloca o referencial a que estamos habituados, que pode muito bem nem ser consciencializado, e coloca-o ao lado dos dois acontecimentos mais importantes de qualquer vida: o nascimento e a morte. O momento a partir do qual o Tempo começa, a contagem inicia-se, o mundo é, e o momento derradeiro, final, a parede preta onde tudo cai em esquecimento.


Quando me pergunto “Por que faço Parkour?” é nestes termos que o faço. Isso é uma evidência constante no meu pensamento. Perante este estado de coisas o mais geral possível, a palavra Parkour perde o seu significado e ganha a forma do camaleão. Metamorfoseia-se livremente e vale por qualquer outra que lá queiramos pôr no seu lugar. “Por que faço seja o que for?”.


Perante isto, há uma atitude a tomar, a mais recorrente, a mais reconfortante e, de certa maneira, aquela para a qual estamos programados à nascença: apagar o exercício feito, esquecê-lo, agarrarmo-nos a qualquer outra coisa que preencha a vida com sentido. Com esta atitude, “Parkour” mantém a sua capacidade camaleónica, porque tudo vale quando o que interessa é conseguir alienarmo-nos dessa evidência pontiaguda de que a morte varre tudo. Qualquer passatempo (no sentido mais forte do termo) serve, e o Parkour é tão bom como outro qualquer perante a falta de sentido que aparentemente caracteriza a vida. É, aliás, essa falta de sentido que dá força a esta atitude. Se nada há a fazer perante a inevitabilidade do esquecimento e da morte, porquê pensar nisso? Porquê perder tempo a matutar nesse beco sem saída? A vida não deixa de existir, e nós não deixamos de ser capazes de fazer coisas apenas porque não há uma razão para tudo isto.


Não permitirei que isto se torne num debate, e, por isso, aceitarei esta posição. Mais que isso, a maneira como quero pensar acerca do Parkour envolve tomar essa opção a favor da vida. Assim, aceito que vale a pena fazer coisas na vida e não pararmos na aporia que aparenta ser. No entanto, não deixarei que o referencial se desloque de novo, simplesmente porque não consigo. Se me concedo uma razão para avaliar as coisas de um ponto de vista “normal” e “comum”, sei que no dia a seguir, ou no outro, essa recordação tão forte, tão visceral, tão dolorosa, me levará ao encontro desse referencial absoluto (o único aparentemente) e todos os significados se misturarão de novo, e o volume que a importância que as nossas emoções dão aos “factos” encolherá até à dimensão de uma folha de papel.


Com isto, a questão colocada “Por que razão faço Parkour?” pode ser recolocada sobre nova luz. Com o sentido que lhe atribuo agora, quero impedir que ela se metamorfoseie. Eu quero saber por que razão devo colocar Parkour na pergunta e não outra coisa qualquer. Já aceitei que alguma coisa, qualquer coisa, deve ser posta lá. Mas porquê Parkour?


No estado da questão tal como a coloquei, todos os motivos que se partilham pela comunidade perdem o seu valor. “Faço Parkour porque é divertido, porque quero manter-me em forma, porque quero estar preparado para uma eventual emergência, porque quero ser conhecido, porque é bonito, porque admiro muito quem faça, porque me dá sensação de liberdade, porque tenho muito tempo livre, porque quero ser capaz de ajudar os outros, porque gosto de me filmar e de me ver a fazer coisas que poucos conseguem, porque me permite conhecer pessoas novas e fazer amizades, porque quero fazer filmes de acção, etc.”


Nenhuma destas razões é exclusiva do Parkour. Algumas delas nem têm nada a ver com o que a comunidade gosta de ver como Parkour. Mas, mais importante que isso, nenhuma delas obriga a que a palavra que utilizemos na pergunta seja “Parkour”. Se eu fizer escalada, se for músico, se for um cientista, se gostar de coleccionar selos, as razões que avançarei para fazer isso serão tão não-válidas como qualquer uma das que um traceur tenha para praticar Parkour. A sua importância será equivalente, todas elas sem volume. Porque a validade de uma razão está no poder que ela tem sobre as nossas opções, e na força com que nos leva a fazermos uma actividade em particular – na motivação que exerce –, não há uma verdadeira validade numa razão enquanto ela não me permitir responder à pergunta que fiz, da forma como a fiz. Ela só poderá exercer poder sobre mim quando valer por si mesma, quando a sua validade estiver para além do que me leve a fazer, do referencial “comum”. Porque, para isso, tenho tantas outras razões para fazer tantas outras coisas diferentes do Parkour.


Uma outra razão, mais óbvia e apoiada pela maioria das pessoas provavelmente, será a de que não é preciso razões para se fazer Parkour. Simplesmente faz-se e continua-se a fazer. Ainda que ameace resolver a questão e nos leve a abandonarmos a discussão, esta razão não tem mais importância que as outras todas. Ela não nos diz por que se faz Parkour ao invés de uma outra coisa qualquer, e ela vai contra a própria necessidade de nos questionarmos acerca disto. E, se sinto esta necessidade, devo fazê-lo e procurar uma resposta que sacie, e não procurar fugir dela, tapá-la com um pano branco e imaculado, uma folha em branco vazia de pensamentos.


Para além disso, se pensarmos na utilidade da própria discussão no que diz respeito ao despertar de outras consciências para o fenómeno do Parkour, evitar encontrar uma razão positiva para que se pratique Parkour quer dizer deixar ao acaso o aumento ou diminuição da comunidade, quer dizer não saber que responder quando alguém nos pede para descrevermos a importância do Parkour, quer dizer não sabermos comunicar a outros, afinal, por que fazemos Parkour. E o suporte primeiro e último de uma comunidade é a comunicação. Se respondermos à pergunta, encontraremos maneira de dizer a qualquer pessoa por que fazemos Parkour e por que deve ela fazer Parkour também.


Quando surgem discussões acerca das razões por que alguém faz Parkour, intriga-me a sua razão de ser. Todas as pessoas, tirando possivelmente a primeira geração de Lisses, eram pessoas antes de serem traceurs. Havia um contexto pessoal em que o Parkour foi encaixado vindo de fora, houve uma adaptação da vida, da rotina, do tempo, às implicações da prática do Parkour. Aquilo que foi absorvido por cada um dependeu das circunstâncias em que tomou conhecimento, da pessoa que era antes, dos objectivos específicos que tinha em mente quando começou a praticar.


Creio que, tal como em outras coisas que decidamos fazer com a nossa vida, há múltiplos níveis ou camadas de envolvimento com o Parkour, que representam a intensidade com que o aceitamos na nossa vida. Cada nível de envolvimento acarreta responsabilidades, compromissos, crenças diferentes e em diferentes graus, e é o nível de envolvimento em que um traceur se encontra que determinará os treinos que faz e o traceur que se tornará. Esse nível dependerá dos projectos mais ou menos longínquos que temos e de quanto estamos dispostos a sacrificar para os concretizar. Igualmente, a disciplina necessária e as mudanças pessoais que precisaremos de sofrer dependerão da distância física e psicológica a que estamos de cumprir esses projectos. Num determinado ponto, faz sentido um traceur perguntar-se “Quão envolvido estou?”, e partir para uma análise do que significa a resposta que der.


Mais importante que tudo isso, o nível de envolvimento determinará a disponibilidade para se fazer outra coisa. É certo que quanto mais tempo, e mais recursos, se gastar construindo algo, maior, mais perfeito, e mais importância terá isso que se escolheu construir. Mas é tão certo o não podermos construir outra coisa com o mesmo afinco, com o mesmo tempo e com os mesmos recursos.


Responder à pergunta “Por que razão faço Parkour?” seria levar qualquer um ao nível de envolvimento máximo, em que o Parkour se torna tudo aquilo para que se vive. No caso dos yamakasi, e de toda a primeira geração, a sua vida era já Parkour antes de terem tempo de formular a questão e, talvez por isso, já tinham uma resposta para ela antes de a colocarem.


Uma resposta


Ao longo dos dois anos e oito meses do meu percurso tenho mantido acesa uma dúvida acerca do nível de envolvimento que tenho com o Parkour, acerca da escolha que tenho a fazer em relação àquilo que vou construir. Posso dizer que desde que acreditei em tudo aquilo que o Parkour pode ser, para além de um passatempo, que muito do trabalho feito nos meus treinos tem sido perceber a sua dimensão correcta e a sua adequação ao que era a minha vida antes de começar a praticar. Consoante essa dimensão, procurei responder à questão “que importância tem o Parkour na minha vida?”. Não digo que passarão todos por dúvidas semelhantes, que não haja quem não planeie nem tente perceber a sua ideia de Parkour (o que não quer dizer que não a tenha), nem que desprezem a necessidade de tais medições. No entanto, para mim, que mantive desde logo um olhar inquisidor sobre o futuro que queria, o percurso de traceur percorreu paralelo com, e tendo sempre em conta, esse futuro eu que me queria tornar. Em paralelo, mas não sobreposto. E isto apesar de, bem vistas as coisas, ainda não saber que futuro será esse. O importante é que as opções que se me apresentavam com a prática do Parkour, e as escolhas que tinham que ser feitas, não foram nunca encaradas de ânimo leve, como mais uma coisa para fazer.


Sempre pus tudo em jogo, ainda que, muitas vezes, apenas o sentia sob a forma de uma picada de desconforto enquanto escolhia ir treinar ao invés de fazer outra coisa, ou a sensação de dever estar a fazer outra coisa qualquer. Sempre procurei ser o mais consciente possível das implicações que uma dedicação séria a uma actividade tão exigente como o Parkour traz consigo, na forma como passaria a encarar as outras possibilidades, naquilo de que teria que abrir mão, em todas as não-escolhas que fiz com cada escolha a favor do Parkour. Numa palavra, procurei encarar o Parkour com responsabilidade. Para mim, isso quer dizer colocar a questão “Por que faço Parkour?” nos termos que descrevi acima, mesmo quando não o explicitava a mim mesmo, simplesmente pela presença, mais ou menos constante em cada treino, das aspirações a tudo o resto que já tinha pensado em ser um dia, as outras escolhas que tomei antes de ter decidido treinar Parkour.


Por isto, o percurso que fui percorrendo não foi contínuo, foi tracejado. Durante todo o primeiro ano e meio muitos treinos eram interrompidos com questões que me ia colocando, tentativas de reforçar em mim a convicção, de resto insegura, de que era precisamente Parkour que eu queria fazer naquele momento, e, se possível, pelo resto da vida. Eram frequentes as oscilações de confiança, à medida que me sentia ir entregando cada vez mais à actividade mas querendo manter um ponto de retorno, uma forma de poder ainda voltar atrás e escolher fazer outra coisa com a minha vida. Não me refiro a uma entrega quantitativa, ou seja, não era que visse apenas a possibilidade de só puder fazer Parkour e nada mais. Refiro-me a uma entrega qualitativa, quer dizer, de tal forma intensa que mudasse completamente a forma como via o meu futuro.


Claro que podia encarar tudo de ânimo muito mais leve, como uma grande diversão. Mas eu sabia que, para que me entregasse responsavelmente, tinha que encarar as coisas com este carácter definitivo; mesmo que pudesse sobrar tempo para muitas outras coisas, sabia que, se não me impusesse esta enorme tarefa desta forma, ia acabar por desleixar-me com os treinos, perder disciplina, e, mais grave que isto, arriscar-me a sair magoado da experiência. Em suma, ia estar a perder tempo ao querer fazer Parkour mas ao não fazê-lo da forma mais eficaz, com regularidade e exigência.


Sei que parte da minha estratégia para lidar com este obstáculo, o mais importante de todo o percurso, foi procurar convencer-me de que, por estar ainda numa fase embrionária, o próprio conceito de Parkour estava ainda em aberto, e podia ser encarado não só como uma actividade física, mas igualmente como uma atitude de aprendizagem e confiança perante a possibilidade de poder fazer qualquer coisa, desde que se assumisse essa tarefa e houvesse verdadeira dedicação. Encarava o Parkour como uma espécie de boa-nova que despertasse quem estivesse disposto a ouvi-la, anunciando a possibilidade de expansão e emancipação de ideias e sensações. Acreditei que, se visse o Parkour como a verdadeira actividade camaleónica, tão completa que não excluísse a possibilidade de fazer de tudo, então deixaria de ter que o encaixar no contexto da minha vida, deixaria de ocupar o espaço das outras coisas porque passaria a ser o próprio espaço onde as outras coisas podiam acontecer. Neste sentido, procurámos, o Bruno e eu, criar um blogue que transmitisse isso precisamente, que esticasse ao máximo a definição do Parkour para que pudéssemos incluir tantas outras coisas que gostaríamos de fazer mas que, nos moldes até agora vistos no Parkour, ficariam excluídos à partida.

Com o avançar do tempo, o crescimento e a aprendizagem, na prática, do que é, de facto, o Parkour, estas ideias foram-me parecendo cada vez mais românticas e desadequadas. Revelava-se para mim que, no fundo, se ocorriam estas dúvidas era porque era outra coisa, diferente do Parkour, que eu deveria estar a fazer. Não era o conceito de Parkour que tinha que ser esticado, mas as minhas aspirações com ele que precisavam de encolher. Vi que, de uma posição inicial, com expectativas e sonhos, comecei por formar ideias algo quiméricas, e certamente ingénuas, do que poderia vir a ser no Parkour. Desafiei a realidade ao acreditar que ser traceur era algo mais do que aquilo que é, ou seja, ao acreditar estar numa posição privilegiada relativamente a ser outra coisa qualquer. Agora, vejo como esse tipo de ideias são típicas de quem ainda não começou verdadeiramente a praticar Parkour.


Toda a gente, mais ou menos conscientemente, tem uma ideia do que é o Parkour para si. Porém, por mais pessoal que seja essa ideia, aquilo que é o Parkour não pode ser definido com nitidez e veracidade sem uma longa experiência prática, não teórica, de treinos. Essa definição é dada pelo conhecimento que se obtém pelo sacrifício feito no dia-a-dia com a prática regular e disciplinada. Porque as transformações que ocorrem num traceur podem ir para além do físico e do psicológico (consoante o nível de envolvimento), elas afectam as crenças e os desejos, as aspirações e a sua personalidade, tanto quanto a sua prática é afectada por estas. Se um traceur constrói uma determinada ideia do Parkour no início dos seus treinos, ele deve ser capaz de torná-la permeável às sugestões que a sua experiência lhe vai dando dessa ideia, e ir transformando-a e apurando-a com a passagem do tempo. Demorou algum tempo até que me apercebesse disto, e, enquanto não o fiz, toda a minha prática estava minada por esses preconceitos que tinha. Porém, a par com estas considerações teóricas, importantes para me convencerem da correcção das minhas escolhas, consegui ir evoluindo nos treinos, na prática, e ganhar alguma experiência real, importante para as ideias que mantenho agora.


Até um determinado momento da minha evolução no Parkour, consegui manter em suspenso a resposta à questão que coloquei acima. Não sabia, nem precisei de saber, que resposta dar. É certo que a debatia, que procurava chegar a ela, mas, tal como não havia de a alcançar por mais que pensasse sobre ela, também o facto de não a ter, nunca foi um impedimento físico para ir continuando os meus treinos, o que dá indicação do seu teor mais empírico do que teórico. Acontece que fui capaz de alcançar um ponto na minha evolução, sobretudo, mas não apenas, física, em que a resposta, ou algo que pudesse colocar no lugar de uma resposta, me surgiu clara: A convicção de que não há uma resposta para a pergunta.


Não há nenhuma razão absoluta, válida para toda a gente, que leve alguém, cuja vida nada tem a ver com o Parkour, a fazer Parkour. A importância do Parkour para os não-praticantes não está dependente da definição do Parkour, apenas das particularidades da vida de cada um aquando o seu contacto, se houver esse contacto, com o Parkour. É talvez uma terrível ingenuidade minha supor que dizer isto seja necessário, mas digo-o porque, se o for, sou ingénuo.


Esta forma tão mais clarificada de ver o Parkour, pelo menos em comparação com outras formas passadas, foi possível porque me senti chegar a um ponto sem retorno no meu treino, ou seja, um ponto a partir do qual a entrega e o sacrifício são tais que nunca mais estaria disposto a abrir mão do que havia alcançado. Para que pudesse evoluir eficaz e inteiramente, o Parkour teria que passar a ser a prioridade na minha vida. Apercebi-me disso e fui forçado a fazer uma escolha. Escolhi não voltar a praticar Parkour.


É verdade que podia simplesmente despojar-me das ideias de evolução constante, das aspirações de poder vir a ser o melhor possível no Parkour. Podia aprender com isto que, em vez de praticar para ser o melhor possível, passaria a ser o melhor dentro das possibilidades que a minha vida permite, dentro do espaço que conseguisse arranjar para os treinos.


Decidi não o fazer por duas razões:

Ao longo destes dois anos e oito meses aprendi bastante sobre certas características e traços da minha personalidade. Ao longo dos treinos, o método do Parkour levou aos seus limites a minha capacidade de adaptação através da sua exigência de certas atitudes, como a perseverança, a resistência ou a confiança. Isso só foi possível porque, face a esses obstáculos, impedi-me de voltar atrás e forcei-me a arranjar soluções para eles. Fi-lo porque insisti na ideia de que tinha que o fazer em prol dessa ideia quimérica de Parkour que referi acima. Sem acreditar nisso, não me teria forçado a superar certas dificuldades. Como disse, essa ideia evoluiu, tornou-se mais realista, e, por ela, já não me vou forçar a superar essas dificuldades. Certas exigências do Parkour são duras demais para mim, e não sinto que as queira superar se não fizer disso a prioridade na minha vida, algo que não estou disposto a fazer.


A segunda razão tem a ver com a aprendizagem que fiz do que realmente significa dedicar-me a fundo a alguma coisa. Foi só quando me senti chegar a esse ponto sem retorno que as coisas se tornaram verdadeiramente sérias para mim, e foi só aí que percebi o que significa alguma coisa ser verdadeiramente séria. Foi graças ao tempo e esforço que dediquei ao Parkour que sei o que isso é. O Parkour é uma actividade que consome muito para ser correctamente praticada. Não sinto que queira fazer do Parkour a prioridade na minha vida, e sei que o que quer que venha a ser essa prioridade, ela será incompatível com a exigência do Parkour. Quero chegar e permanecer no ponto sem retorno de algo, não sei ainda o quê, mas sei que não é o Parkour.



Fala-se muito sobre o que é o Parkour. São comuns na comunidade os debates sobre o que leva cada um a fazer Parkour. Foi uma questão a que tentei responder logo que comecei a perceber a dimensão que pode ter o Parkour na vida de uma pessoa. Cheguei a uma resposta. Ela é, no entanto, pessoal e verdadeiramente intransmissível. Tal como todas as respostas, não é geral nem aplicável a todos.

Se há algo que é verdadeiramente geral, aplicável a todos sem excepção e que deve ser encarado com a maior responsabilidade por praticantes e por futuros praticantes, é somente a pergunta: “Por que razão faço Parkour?”.

domingo, 24 de agosto de 2008

Garagens









*Primeira de duas partes. Segunda parte aqui.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Shades of Arabesque



terça-feira, 29 de julho de 2008

Especialização?


A ideia de que o Parkour é uma actividade física extremamente completa é recorrente dentro da comunidade. Se observarmos o treino de um traceur típico vemos que este pode variar entre o desenvolvimento da resistência física, da força, do equilíbrio, da capacidade de salto, da coordenação psicomotora e de muitos outros aspectos mais ou menos específicos dentro destes mais gerais. Podemos também recorrer a outro tipo de abordagem e pensar não nas competências físicas que são exigidas mas sim no estilo de treino que está relacionado com a dedicação a cada uma delas. Assim, podemos dizer que em alguns treinos optamos por desenvolver um estilo mais ligado à fluência dos movimentos, procurando o encadeamento perfeito entre as várias técnicas numa sequência que se torne única (aqui a resistência e a coordenação psicomotora têm um papel central). Noutros procuramos talvez a sistemática superação dos nossos limites, tentando sempre chegar mais alto ou mais longe do que antes, estilo esse que conduz claro ao desenvolvimento da capacidade de salto e da força física de uma maneira geral. Existem também aqueles em que nos dedicamos à repetição consecutiva do mesmo movimento e isto com dois objectivos ou resultados principais – primeiro, o aperfeiçoamento da técnica propriamente dita e segundo o treino físico associado a esse gesto. Podemos também destacar o equilíbrio, talvez o único aspecto que é ao mesmo tempo uma competência e um tipo de treino em si mesmo.

Por ser assim completo o Parkour torna-se também extremamente exigente. Manter uma consistência razoável em todos estes aspectos é uma tarefa árdua. Se multiplicarmos cada uma destas competências e abordagens por cada movimento susceptível de ser trabalhado podemos ter um vislumbre de todo o espectro de possibilidades que se apresenta. Assim, pode ser fácil cair num tipo de treino errático, desconectado e incoerente. A conclusão a que fui conduzido, reflectindo sobre isto é que a especialização parece ser, para o meu caso em concreto pelo menos, uma solução muito apetecível... Por um lado e como referi, sinto que repartir o meu esforço por todas as possibilidades que um treino de Parkour oferece não permite mais do que certa mediocridade em todas elas. Para melhores resultados seria necessária uma rotatividade muito disciplinada e regular que reconheço não estar ao meu alcance, em parte por força do tempo que ela implica. Por outro lado existe, no meu entender, um aspecto muito relevante e que é talvez aquele verdadeiramente decisivo - a apetência. É inegável a possibilidade de reconhecer em cada traceur uma certa inclinação ou tendência para um estilo de treino específico, em parte pelas suas características físicas mas também pelos seus traços de personalidade, que se prestam mais a um certo tipo de abordagem. Talvez porque esta é a melhor forma de optimizar o meu tempo de treino ou simplesmente porque é aquela que me dá mais divertimento, sinto-me tentado a dar prioridade ao estilo de treino para o qual sinto mais apetência.

A pergunta impõe-se, já que a dúvida vai a par com a certeza. Especialização?


quinta-feira, 26 de junho de 2008

O fim das renovações










sábado, 14 de junho de 2008

Brasil e Portugal – duas margens de um percurso

O Parkour é, como sabemos, um fenómeno global, esse assunto foi até aflorado no último artigo do Pedro e é recorrente neste blogue. Como tal, tentamos nos nossos artigos veicular uma perspectiva compreensiva dessa dimensão e deixar que as ideias emergentes sejam fruto das manifestações que surgem de todo o mundo. Essas manifestações podem ser blogues do Reino Unido, vídeos de França, documentários dos EUA, caminhos pela China ou treinos na Letónia. No entanto ainda não tínhamos passado pelo Brasil e esse é, afinal de contas, o país do mundo onde a língua portuguesa é mais usada e por uma margem larguíssima. É a nossa língua, aquela que usamos neste blogue. Assim, nem que seja só por razões estritamente probabilistas, é de lá que pode vir o maior afluxo de contributos para a discussão que queremos manter aberta aqui n’O Percurso e consequentemente o maior número de ideias susceptíveis de gerar reacção, aquelas que põem as rodas a andar, que fazem o Parkour evoluir. Excluir o Brasil desta conversa é portanto um erro, um erro que no meu entender deixa-nos para trás, como se estivéssemos a olhar da plataforma, à espera de uma comboio que já saiu há muito.

Mas a ponte não se faz apenas de palavras, nem de estimulantes trocas de opinião. A ponte é feita acima de tudo de experiências, da partilha dos mesmos locais, dos mesmos treinos. É por isso que traceurs de todo o mundo vão a Lisses e a Evry, porque esses são os lugares mais carregados de experiências e conhecimento. E como diz o TK, autor do Project Pilgrimage, essa viagem atinge o seu sentido mais absoluto quando nesses lugares há o encontro com as pessoas que treinam lá, que cresceram lá, que construíram as experiências de que esses lugares são feitos, quando há essa partilha de que falei. É portanto legítimo que os traceurs brasileiros sintam o impulso de fazer a viagem até Lisses e Evry, tal como eu o sinto.
Para que a ponte entre os nossos dois países não seja só feita de palavras e para que possa haver uma verdadeira partilha das experiências que reunimos até aqui eu vou ter a ousadia de propor aos traceurs brasileiros que pensem em Portugal como um ponto de passagem, mais uma etapa se quiserem, na viagem que vão fazer até Lisses e isto para mim faz todo o sentido por três motivos fundamentais. O primeiro está relacionado com facto de o Parkour ter nascido na Europa. A paisagem urbana e suburbana que predomina neste continente tem especificidades que a distinguem de outros lugares do mundo e, sendo extremamente heterogénea, forma um estranho agregado de possibilidades que é muito singular. A diversidade é tão grande que se nos conseguíssemos afastar o suficiente (não para cima, nem para o lado mas em todas as direcções ao mesmo tempo) para conseguir uma perspectiva global sobre este emaranhado de construções, julgo que veríamos essa diversidade transformada num enorme borrão de formas indistintas, homogéneo, afinal de contas. No entanto o desenvolvimento deste tema é material para outro artigo e por isso apresso-me a concluir este ponto referindo que Portugal, sendo um país europeu, faz parte desse borrão e partilha com França muitas das características urbanísticas que privilegiam a prática do Parkour.
A segunda razão vem no seguimento da primeira e é simplesmente o facto de Portugal ser o país europeu geograficamente mais perto do Brasil. Assim, é um ponto de passagem lógico para quem quer fazer a viagem até França. E seguindo este raciocínio rapidamente chegamos ao terceiro e último motivo que é obviamente a proximidade facilitada pela língua. Um país desconhecido pode ser um lugar pouco acolhedor quando não há uma ligação linguística com as pessoas que nele vivem, pelo contrário, um país onde falam a mesma língua que nós é obviamente muito mais convidativo e essa é menos uma barreira que um visitante tem de enfrentar. Para quem vem do Brasil, essa barreira não existe aqui e assim, depois desta primeira etapa, os visitantes podem seguir viagem já familiarizados com o novo continente e mais confiantes para enfrentarem o obstáculo linguístico.

Se decidirem aceitar este desafio estou certo de que os traceurs portugueses que contactarem vão fazer tudo para que se sintam em casa e claro, este blogue é um espaço aberto para manifestarem essa vontade de cruzarem o vosso com o nosso Percurso.



segunda-feira, 9 de junho de 2008

O paradoxo da rede

Uma das características mais importantes do Parkour, que está para além da sua dimensão física, é o movimento comunitário que é capaz de gerar e do qual, por sua vez, ganha energia. Por comunitário, refiro-me a uma nova forma de acontecerem as relações sociais, diferente já daquela em que pessoas moravam mais ou menos próximas, partilhavam lugares, serviços e acontecimentos. Creio que evolui a partir desta ao passar a incluir um paradoxo, permitido pelas novas tecnologias e por toda a tradição ciberespacial consequente. Este consiste na vivência de um acontecimento por duas formas até agora mutuamente exclusivas – a local e a global. A tal ponto, que os próprios conceitos de local e global já se vão confundindo, quando acontecimentos, eventos, feitos e conquistas alcançadas a muitos quilómetros de distância se apresentam com a mesma força, a mesma insistência e a mesma importância do que outros ocorridos a alguns quilómetros apenas. Contribui para isso a própria natureza da Internet, onde não existe o conceito de distância, porque tudo está em todo o lado ao mesmo tempo, nem o de movimento de informação. Curioso como vive o Parkour de um fenómeno completamente estéril de movimento.

Este fenómeno vai, ainda assim, muito para além do Parkour. É um fenómeno social total. O que é muito particular do Parkour é o facto de ter aparecido e se ter desenvolvido já dentro deste novo espírito comunitário. Não houve nunca Parkour fora de um mundo onde a importância, o valor e nosso contacto com os acontecimentos perderam o seu referencial tradicional – a aproximação física de cada um a esses acontecimentos –, ganhando um outro… qual? Ainda não se sabe muito bem. Se antigamente aquilo que era importante na vida das pessoas, que tinha o poder de as afectar, mudar de ideias, aquilo que preenchia a sua existência, no sentido mais forte da expressão, era determinado em quase toda a sua totalidade pela sua aproximação e pela distância, hoje, esse marco começa a tremer à medida que a Internet vem destruir essa distância. Se a televisão começou a configurar este novo mundo, e cada contributo tecnológico antes dela também, a Internet imprimiu uma velocidade frenética às mudanças que só se podiam timidamente antever, empurrando-nos para ele quase sem darmos conta disso.

A aproximação cronológica da explosão cibernética e do surgimento do Parkour dá-nos a suspeita de que todo o movimento deste seria muito diferente caso imperasse o referencial social tradicional, ao mesmo tempo que nos deixa o sinal de que precisa deste novo paradoxo para respirar, como são precisos os conselhos, os vídeos, os artigos, as imagens para o traceur, de Lisses, de Cambridge, do rigor francês, da eficácia britânica, do instinto letão, e como há tanto deles no nosso treino, nas nossas escolhas, no nosso método. Quem seria David Belle sem a nova tradição? Teria permanecido um bombeiro local, com longas e belas lembranças de uma juventude passada a subir muros, paredes e árvores, momentos de companheirismo são com os seus vizinhos de Lisses, e nada mais que um registo vago na memória de tempos idos e perdidos. Que seria feito dessa semente cultivada em terra francesa sem o adubo tecnológico e a energia proveniente de todos os cantos desta aldeia global? Germinaria? Estiolaria?

Nota: este artigo retoma um tema tratado previamente no artigo "A rede".

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Da motivação

O presente artigo expõe uma reflexão, sempre inacabada, sobre a motivação. Porque se trata de uma das principais questões levantadas por qualquer praticante de Parkour, e, até, de qualquer pessoa que se proponha a si mesma a conquista de algo, senti uma necessidade de enquadrá-la, defini-la, tanto quanto possível.

Creio que a motivação varia inversamente com o hábito. Se tomarmos a primeira como uma variável activa, o segundo podemos tomá-lo como uma variável passiva, ambos produzindo o mesmo efeito, isto é, a acção. Quero dizer que uma acção pode ser o produto de, ou motivação, ou hábito. Não creio que sejam mutuamente exclusivos, só que, enquanto a motivação tem um papel activo, excitando-nos, o hábito tem um papel passivo, ou apassivante, inibindo-nos. A motivação gera acção consciente, o hábito gera acção inconsciente. Acção, aqui, é tomada como um termo substituível por atitude, reacção, mesmo, num sentido próprio, emoção.

A motivação força um caminho novo para as nossas acções, leva-nos a querer fazer coisas novas, desvia-nos de um padrão de comportamento que já conhecemos e faz-nos criar e explorar outros. O hábito, por seu lado, faz-nos tomar acções que já conhecemos, comportamentos cujos efeitos não serão mais uma surpresa, mesmo que continuem a dar-nos prazer. Mais ainda: ele inibe a nossa vontade de procurar coisas novas para fazermos. Na medida em que, para uma dada acção, nos faz exigir cada vez menos racionalização – uma ponderação dos resultados a alcançar, da experiência prestes a ser vivida – como que vai adormecendo em nós a procura de um certo distanciamento que essa racionalização nos permite e que, por vezes, é necessário para que possamos realmente escolher fazer coisas novas.

Se tomarmos por analogia o percurso das gotas de água sobre um vidro, diríamos que a primeira das gotas a contactar com a superfície trilha um caminho por entre muitos possíveis, levada por um factor que aja sobre ela sob a forma de motivação, que, no seu caso, é o caminho que ofereça menos resistência à sua passagem. Devido à diminuição subsequente da força de atrito (resistência), todas as gotas seguintes serão conduzidas pela vala que a primeira criou com a sua passagem À medida que mais e mais gotas vão passando, vai diminuindo a quantidade de resistência que se opõe a cada nova passagem. Acontece, pois, que estas são influenciadas pelo mesmo factor que a primeira, a menor resistência, e da mesma forma, são motivadas, devido à diminuição progressiva dessa resistência com cada nova passagem. Pode pôr-se o caso, porém, (que é o que acontece connosco) de chegar uma altura em que, permanecendo o factor que age sobre cada gota (a menor resistência), este deixar de o fazer enquanto motivação, por exemplo se houver uma saturação da superfície do vidro e se torne impossível diminuir ainda mais a força de atrito. Neste caso, já nada há, para cada nova gota que cai sobre o vidro, que motive a seguir o trilho feito pelas gotas precedentes em vez de outro por onde pudesse ir, pois a resistência já não poderá diminuir mais. O que as leva, então, a seguir pela mesma via? O hábito, quer dizer, o nível de resistência mínimo, agora invariável, alcançado pelas predecessoras.

No nosso caso, para além das razões que suportam, ou justificam, o agirmos desta ou daquela maneira, e o possível efeito motivador que exercem sobre nós, há igualmente uma progressiva atenuação desse efeito motivador, como que um desgaste temporal da nossa capacidade de sermos afectados da mesma maneira pelas mesmas razões. Cada vez que agimos tendo em mente uma razão qualquer, essa razão perde valor motivador, sentimo-nos menos motivados. Falo aqui dos factores, causas, razões, que, de facto, produzem uma alteração interna forte, que mexem connosco, que nos devolvam a um sonho de podermos ser qualquer coisa e, como que embevecidos por uma qualquer quimera, nos façam esquecer aquilo que, por hábito, tínhamos planeado fazer e nos levem a um outro lado, diferente e novo. Há outros, certamente muito importantes também, cuja utilização que fazemos deles diferem, porém, seja pela sua abstracção, seja pelo seu carácter assumidamente utópico, seja, como no caso de um sentimento religioso, pela sua magnanimidade quando em comparação connosco. A estes, a que normalmente designamos por “grandes ideias” ou ideais, socorremo-nos para justificar uma posição tomada, geralmente quando em conversa com outras pessoas, onde procuramos, tal como num debate no parlamento, defender uma causa, uma visão do mundo. Neste caso, creio que o seu efeito é de inspiração, e não tanto de motivação. Por exemplo: O conhecido argumento, em prol da actividade física e do Parkour, de que é necessária a preparação para situações extremas, para emergências, para ajuda comunitária, é uma das ideias que age como inspiração para a prática da modalidade, como justificação para terceiros e, se reflectirmos sobre isso, para nós mesmos. Não é, porém, um verdadeiro factor de motivação. Isto porque, creio, no plano das emoções, das inclinações, das atitudes que definem as escolhas no nosso dia-a-dia, elas não agem com nenhum tipo de energia nova. Elas são as bóias que sustêm o barco, mas não podem ser os motores que o empurrem avante. Talvez por isto estas raramente mudem ao longo do percurso do traceur.

Os factores que nos motivam – os verdadeiros motivos –, aqueles em que, pela sua presença concreta no nosso dia-a-dia, pensamos ao escolhermos sair de casa para treinar, não podem estar tão afastados de nós quanto essas ideias. Eles têm que ser capazes de produzir um efeito no agora, no presente. Um exemplo deste tipo é dado pelo David Belle num conhecido documentário sobre o Parkour onde, imediatamente antes de se lançar de um telhado para a relva, fala da adrenalina que é possível sentir com a prática do Parkour. É verdade que, ao referi-la, tornou-a numa ideia abstracta, desapossou-a da emoção e da materialidade que, afinal, só ele estava a sentir no momento em que falava. Não esqueçamos que se estava a referir a terceiros e, por isso, a necessidade de tornar esse sentimento rudimentarmente acessível a todos nós. Importa, com este exemplo, questionarmo-nos sobre se, nesse momento, ele invocou para si o ideal humanista de ajuda do próximo, ou o lema ““etre fourt pour etre utile”. Creio que não…

Numa palavra, esta distinção resume-se muito bem na visceralidade com que as ideias e as razões nos afectam na nossa prática diária, e é aí que reside a possibilidade de nos motivarem e de, com o tempo, nos habituarmos a elas.

É precisamente relativamente a estes, na transformação da sua capacidade de nos afectarmos, que o jogo motivação/hábito acontece. Quando a sua força deixa de se fazer valer, ou seja, quando deixamos de ter necessidade de nos auxiliarmos nessa razão para tomarmos determinada acção, então passamos a agir por hábito. Continuamos a agir, não porque algo nos empurre para tomarmos essa acção, apenas porque nada nos empurra a tomarmos uma acção diferente dessa. Desta forma, o hábito pode ser encarado como uma inibição da força de motivação de um determinado factor para agirmos de determinada maneira. Ele vem, por força de uma eficácia e poupança de energia, substituir a motivação (mas nunca os factores em si) na nossa condução, tornando-a desnecessária.

Se tomarmos novamente o exemplo dado pelo David Belle, alguém em quem, julgo, o hábito exerce um papel muito mais forte do que a motivação, de resto, tal como na maioria dos veteranos do Parkour, a adrenalina a que se refere durante o salto pode ser uma forte razão que leve alguém que nunca praticou Parkour a calçar uns ténis e a experimentar um salto daqueles. Essa pessoa nunca tinha tomado essa acção. Um determinado factor, a sensação de adrenalina, exerceu um efeito de motivação sobre essa pessoa, ou seja, levou-a, pela sua própria imaginação, a considerar uma acção que, até então, nunca tinha ponderado como possível para si e, contra o que é hábito seu, saiu de casa, trepou um muro qualquer e lançou-se nessa experiência. Para alguém como o David Belle, o hábito do treino diário, já profundamente enraizado, leva-o à mesma acção que a esse novo traceur, e, ao fazê-lo, o factor que exerce influência nele é o mesmo, a adrenalina. Porém, a sua experiência já não é nova, a acção tomada é a mesma que no dia anterior, e no outro, e no outro e, a menos que algum outro factor o motive a tomar uma acção diferente, o hábito criado por si em si fará com que, por muitos dias que virão, ele calce os ténis e se lance de um telhado abaixo. Para esta acção específica, o Belle não precisa já, ao contrário do novo traceur, de ser motivado pela possibilidade da descarga de adrenalina. Ele já a conhece, o que não quer dizer que não sinta igual prazer de cada vez que ela acontece. Pelo contrário, é precisamente o conhecimento pleno desse efeito que tornou desnecessária a motivação, e fê-lo, provavelmente de forma inconsciente, aceitar como um hábito a prática diária do Parkour.

Uma outra forma de vermos a relação entre a acção, a motivação e o hábito, é tomando em conta o trabalho realizado por nós em nós, quer dizer, pela nossa vontade mais consciente sobre o resto dos nossos interesses, apetites e inclinações, até nos levarmos à opção por uma acção. Na analogia descrita acima, diríamos que, quando as primeiras gotas iam passando, a diminuição da resistência do vidro motivava-as, enquanto que elas próprias iam contribuindo para a diminuição dessa resistência, ou seja, iam realizando trabalho, contribuindo para a motivação das gotas que viriam a seguir. As últimas gotas, as conduzidas pelo hábito, já não realizavam trabalho nenhum, porque a saturação do vidro já não permitia uma redução da resistência. Elas eram conduzidas pelo trabalho outrora realizado, mas já não contribuíam para a motivação posterior. Podemos supor uma ligação entre a motivação que nos confere determinado factor e o trabalho que realizamos em nós, ou seja, as mudanças que somos levados a produzir pela nossa vontade na nossa forma de agir, no nosso quotidiano, nas nossas escolhas. Descobrimos que não estamos motivados a fazer algo quando, para o fazermos, já não consciencializamos completamente, quando já não há Dúvida, questões, pormenores a serem acertados.

Não é de supor, porém, que, no conjunto das acções mais recorrentes do nosso quotidiano, aquelas que, pela sua necessidade, pela premência com que se impõem, enfim, pela memória que vão introduzindo na nossa prática diária, não seja realizado nenhum trabalho do tipo especificado. Quero dizer, há certamente uma vontade inerente à própria possibilidade de fazermos coisas, independentemente do móbil que a despoleta ou a forma como o faz em nós, e há, consequentemente, um trabalho realizado por essa vontade. Porque é da natureza humana a dinâmica emocional que traz a inconstância, raros são os momentos em que um leme seguro e firme seja dispensado, e é no trabalho que o nosso grande timoneiro interior realiza, que reside a própria possibilidade de fazer uma escolha. Se aceitarmos essa inconstância, cuja base está, em parte, na afectação constante da nossa sensibilidade pelo meio circundante, então podemos suspeitar da própria inconstância da nossa vontade e, quem sabe, de todo um espectro de matizes sobre que vai rolando com o passar do tempo e a transposição dos obstáculos diários, que definirão a força e a determinação dessa vontade. Mais que isso, determinarão a necessidade que, tendo em vista determinada escolha (para uma dada acção), teremos do seu carácter férreo, ou seja, da sua imobilidade, da sua permanência e salutar insistência em conquistar essa escolha, em tomar essa acção. Desta forma, ainda que possamos admitir a realização de um certo trabalho interno com qualquer acção tomada, menosprezemos aquele mínimo necessário para podermos funcionar correctamente e concentremo-nos antes naqueloutro suplementar, extra, aquele “boost” que nos desperte para algo que nunca havíamos feito anteriormente. E é aí que pode, talvez, residir a diferença, em termos de trabalho, entre a acção motivada e a acção habituada.

domingo, 11 de maio de 2008

Apontamentos

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Chegar ao castelo

A serra mostrou-se à nossa frente na manhã de um sábado com sol e uma temperatura amena. Antes de começarmos tive a sensação de estar à beira de um momento importante, uma descoberta, uma experiência intensa. Éramos dois a subir.
Primeiro as ruas da vila, íngremes e estreitas. Depois a estrada que abraça a serra. E finalmente o bosque. Escolhemos fazer o caminho a direito, o mais possível. Surgisse o que surgisse queríamos seguir em frente e tentar por tudo ultrapassar as dificuldades - muros em ruínas, silvas, fragas, árvores caídas, muita terra... O bosque foi ficando progressivamente mais despido e escarpado até que chegámos a uma imensa penedia que anunciava a aproximação ao topo. A escalada exigiu toda a força de braços e pernas que o treino havia conquistado, a irregularidade dos apoios pôs à prova todas as competências adquiridas. Compreendi que muitas delas nunca haviam sido verdadeiramente testadas mas por outro lado senti que estavam prontas, aptas, ansiando em segredo por este desafio.
O Remy, mais alto, chegava com menos apoios ao cimo dos penedos. Eu, mais pequeno, entrava pelas aberturas nas rochas e rastejava com mais facilidade. Até que chegámos ao topo dos rochedos e ao último desafio. A muralha do castelo, vertical à nossa frente, oferecia a subida mais exigente de toda a escalda. Usando as reentrâncias na parede subimos passo a passo, testando todos os apoios até tocar com as mãos nas ameias do castelo. Um último impulso e estávamos seguros no interior das muralhas.
Ao pousarmos as malas, feitas pesadas para optimizar o treino, senti-me invadido por uma sensação boa. Lá em baixo estava uma miniatura da vila de Sintra, brilhante sob o sol do meio-dia e ao longe, mergulhado numa leve neblina, o filão de onde originei, suburbano de possibilidades.

domingo, 6 de abril de 2008

A escola de música



















domingo, 30 de março de 2008

Cem por extenso

Garagens. Com um cheiro a pó, o espaço é jogado pelas sombras, vestido de uma cor baça pelas entradas de luz irregulares. O ritmo é marcado pelo timbre metálico da sarjeta, pisada pelos carros que vão entrando e saindo, indiferentes à sagrada beatitude do local.

A abundância de percursos que as garagens permitem leva a que, recorrentemente, planos já traçados se entrecruzem entre si, intenções se sobreponham, mesmo necessidades físicas se alterem. A riqueza da sua configuração desperta uma vontade infantil para a brincadeira, e facilmente nos soltamos à maré do improviso. Talvez seja preciso um sítio como este para que um treino de braços se torne na experiência nova de um treino de cem precisões seguidas.

A ideia, nascida na crescente tradição, mantinha-se adormecida. Levado pela distância inocente dos dois lados de um muro, conduzido pela sua energia pétrea, o meu corpo repescou-a, despertou-a, e, na repetição dos seus gestos, na quase monotonia dos seus passos repetentes, fez-me ver que a tinha posto em prática.

“Se fizesse cem precisões?”, atrasado, perguntei-me.

Depois da consciência, chegaram os cálculos e as medições. Sete pés, palmo de grossura, de uma textura áspera, dificilmente escorregadia. Um conhecido, é certo. Uma. Duas. Três. Com uma meta traçada sucedem-se questões, dúvidas, avançam-se hipóteses. Há um apelo a uma certa determinação, porque parece que um pensamento nunca vem só. Quatro. Não chega fazer a precisão, há que ter cuidado com a fluidez, polir cada passo. Cinco. Um número tão grande permitirá isso mesmo. Seis. São três. Da aterragem, de um lado do muro, ao outro lado, de onde parte a sétima precisão, são três passos no mínimo. Sete. Oito. Nove. Pontas dos pés. Dez. Pontas dos pés. Onze. Mais na ponta ainda. Doze. Treze. Quanto mais na ponta, menos o barulho no impacto. Catorze. Quinze. Milímetros abaixo dos dedos dos pés, a precisão oscila o mínimo. Dezasseis. Quanto mais perpendicular ao muro chegar, mais progressivo o contacto da área do pé com o muro. Dezassete. O joelho direito sugere uma mudança de exercício. O pequenino estalinho remete-me para o aquecimento. Também para a postura do corpo todo na aterragem, exige uma distribuição mais equitativa da energia no momento do contacto com a pedra amarela. Dezoito. Melhor. Dezanove. Estalinho. Vinte. Assim ainda não, mais cuidado, mais postura. Vinte e Um. Isso. Vinte e Dois. Vinte e Três......Vinte e Quatro..........Vinte e Cinco................Vinte e Seis........................Vinte e Sete....................................Vinte e Oito. A passagem deve poder ser mais fluida, mais eficaz. Vinte e Nove. O mínimo de tempo possível, mas mantendo-me em cima do muro. Trinta.............Trinta e Um..........Trinta e Dois.....Trinta e Três. Mais de seguida, ainda. Trinta e Quatro...Trinta e Cinco. Trinta e Seis.Trinta e Sete.TrintaeOito.TrintaeNoveQuarenta.

Descanso.

Há um desvio da atenção do muro, um olhar em redor, turvo. A necessidade de regular a respiração e as gotas de suor que vão brotando um pouco por toda a pele são produtos do exercício, do que este muro de sete pés tem para dar. Parar, por instantes que sejam, desviar a atenção e pensar noutra coisa, é como uma lufada de ar fresco. Deixar o muro, o exercício, o movimento, absorver-nos totalmente desampara também. Pode ser asfixiante…

…faltam Sessenta. Quarenta e Um. Quarenta e Dois. Quarenta e Três. Quarenta e Quatro. A concentração parece como o mergulhar da mão numa terrina com água quente. O contraste é evidente ao início, enquanto a diferença entre as temperaturas é maior. Abandonando a mão inerte, o tempo equilibra essa diferença, e a percepção de calor esmorece progressivamente. Perde-se, por fim. É uma pequena oscilação, da mão ou da terrina, que torna a desequilibrar as quantidades de energia térmica, avivando a sensação de novo. Quarenta e Cinco. Quarenta e Seis. Quarenta e Sete. Como se os pensamentos fizessem a terrina oscilar. Quarenta e Oito. Quarenta e Nove. Cinquenta. Metade. Cinquenta e Um. E o grau de concentração, que nos vai aproximando de um instinto do movimento, se perdesse. Cinquenta e Dois. Cinquenta e Três. É como se, por um certo receio do puro instinto, de uma incontrolada inconsciência, pensamentos despoletassem automaticamente, por sobrevivência, segundo as regras aprendidas pela evolução. Cinquenta e Quatro. Cinquenta e Cinco. Mas automaticamente porque obedecendo a um instinto também, outro instinto, como espécies animais que somos. O inapelável instinto humano de sermos racionais. Cinquenta e Seis. Guerra civil de instintos. Cinquenta e Sete. Cinquenta e Oito. Cinquenta e Nove. Sessenta. Sessenta e Um. Sessenta e Dois. Sessenta e Três. Durante o salto, a cadeia ruidosa dos pensamentos interrompe-se. Há uma teleportação da consciência. Sessenta e Quatro. Antes do salto: os sete passos são de distância. O local de aterragem dos pés está encolhido pela perspectiva. Há voz nos pensamentos, de receio, de encorajamento----»Sessenta e Cinco----»Depois do salto. Nova perspectiva. A localização detalhada dos pés. Introspecção, sobre as repercussões da aterragem ao longo do organismo. Sessenta e Seis. Sessenta e Sete. Sessenta e Oito. Mas é possível forçar pensamentos enquanto não há contacto do corpo com a pedra. Se se calam, uma curiosidade leva-nos a experimentá-los durante o voo. Sessenta e [o ruído, ensurdecedor, é pura desconcentração. A desorientação pode levar à queda e à dor] Oito. A inocente experiência provoca um desequilíbrio ao aterrar. Sessenta e Nove. Setenta. O desequilíbrio provocado lembra-me de que, até aqui, todas as precisões me têm colocado, incólume, no outro lado do muro. Setenta e Um. Setenta e Dois. Mas mostrando como há, apesar de o mesmo propósito ser cumprido por cada uma, inesgotáveis diferenças entre cada salto. Um ponto de partida igual para saltos distintos entre si. Setenta e Três. Setenta e Quatro. Este, por exemplo. Os pés chegaram ao outro lado com o meio da planta. Quase com o calcanhar. Mas o equilíbrio mantém-se. Setenta e Cinco. Setenta e Seis. Força a mais… Mas, meio segundo depois, o corpo imobiliza-se, sob a orientação da ponta dos pés, da compensação dada pelos tornozelos, da absorção feita pela dobra dos joelhos, das costas esticadas e firmes, do contra-balanceamento dos dois pêndulos, direito e esquerdo, gémeos simétricos, do suporte de um pescoço que, de dizer que sim, que não, que talvez, estabiliza, sem esforço, todo o crânio – os olhos que vêem, os ouvidos que sustêm o equilíbrio. Setenta e Sete. Setenta e Oito. Faltam poucas. Setenta e Nove. Oitenta. Vinte apenas. É como se fosse impossível saltar exactamente da mesma forma, em dois saltos diferentes. Oitenta e Um. Oitenta e Dois. Não podemos confiar na repetição milimétrica de um salto que já conseguimos, outrora, fazer perfeito. Repetição não pode querer dizer reprodução física exacta, somente repetição da mesma intenção em circunstâncias o mais parecidas possível. Mas há uma certa confiança, crescente em cada salto, na capacidade de adaptação que vamos ganhando. Uma adequação de um determinado movimento, feito diferente de cada vez, a uma mesma intenção. Oitenta e Três. Oitenta e Quatro. Com o mesmo objectivo, mas uma variabilidade indiscernível – da força da impulsão, do equilíbrio no momento do salto, da direcção certa, das distracções com que o meio ambiente na sua aleatoriedade, e os nossos pensamentos na sua volatilidade, nos podem surpreender –, a garantia de uma precisão bem conseguida é conquistada durante o salto, com a adaptação infinitesimal de que o nosso corpo é capaz. E é isso que transportamos connosco, das garagens, para qualquer outro local. Oitenta e Cinco. Do exterior, são braços que se movem, com gestos característicos, mas sempre diferentes. Oitenta e Seis. Pernas que, primeiro, esticam, depois encolhem, depois esticam de novo. Oitenta e Sete. Todo um movimento, em cada fase repetido, em cada fase diferente de outro anterior. Oitenta e Oito. Do interior, são músculos que se dobram, ossos que vibram, matéria que é queimada na produção de energia que é consumida. Oitenta e Nove. Uma acção para cada reacção que, do exterior, é observável. Confiança conquistada pela aprendizagem do nosso comportamento perante a inquietante variabilidade de cada salto, dos recursos que temos, e que vamos ganhando com o treino, para lidar com ela. Noventa. Faltam dez precisões. Quem nunca fez já dez precisões de seguida? Noventa e Um. Noventa e Dois. Noventa e Três. Noventa e Quatro. Noventa e Cinco. Noventa e Seis. Noventa e Sete. Noventa e Oito. Noventa e Nove. E se caísse agora? Cem.